FALTA DE RESPEITO COM O VELHO CHICO EM PETROLINA DEIXA MEMBRO DO CBHSF PREOCUPADO

Semblantes de preocupação, olhares distantes e cabeças baixas. Ambiente árido na 27ª plenária do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), realizada nos dias 21 e 22 de maio, na cidade de Petrolina (PE), às margens do Velho Chico. O cenário pintado por todos, inclusive por Luiz Alberto Dourado - membro do comitê e representante do submédio São Francisco na atualização do Plano Diretor de Bacias Hidrográficas - é devastador. “O momento atual é dramático”, diz Dourado.

A declaração é fundamentada na grave crise hídrica que atinge cerca de 15,5 milhões de moradores da bacia. Aliado aos problemas históricos de degradação e falta de investimentos na revitalização do rio, a seca na cabeceira e ao longo do leito do rio provocou baixíssimas vazões dos reservatórios, especialmente o de Sobradinho, na Bahia, que hoje atinge 21% de volume útil, ou seja, o que faz as turbinas da hidrelétrica se movimentar. “A Bahia não tem gestão de recursos hídricos”, diz ele, apontando uma “seca de gestão governamental”.

Segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) informou na própria plenária, se permanecer com a vazão atual, Sobradinho chegaria a zero de volume útil, atingindo o chamado volume morto, em novembro. Por isso, o ONS baixou a vazão de 1,3 mil metros cúbicos por segundo para 1,1 mil metros cúbicos e agora defende a flexibilização para 900 mil metros cúbicos por segundo.

Contrário à medida, crítico do setor hidrelétrico - que teria “turbinado” demais a usina no período úmido - e mais crítico ainda do setor agrário - que, nas suas palavras, “saqueia” as águas do Chico - Dourado concedeu uma entrevista contundente às vésperas de 3 de junho, Dia Nacional em Defesa do Velho Chico, quando haverá uma mobilização nacional capitaneada pelo comitê.
Não bastasse toda a crise hídrica, o representante do ONS acaba de traçar um quadro crítico do reservatório de Sobradinho. Como o senhor vê isso?

O que o ONS retratou é uma realidade crítica e verdadeira. Mas o que ele não disse, e que nós pontuamos, é que ele, o ONS, turbinou no período úmido mais água do que deveria. O período úmido, de chuvas, nos anos anteriores, quando estava recebendo água, ele soltou muita água, mais rapidamente. Cometeu um erro gravíssimo de gestão.

Por que ele ‘turbinou’ demais?
Porque ele quer gerar energia. Você sabe quanto lucrou o setor hidrelétrico brasileiro no quadriênio de 2009 a 2012? Sabe quanto eles arrancaram de dinheiro de dentro da bacia, turbinando água? Foram R$ 9 bilhões. A fonte é a Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco). Pode conferir lá. Arrancaram dinheiro de dentro da bacia turbinando água e comprometendo os usos múltiplos. Quanto mais água ele turbina, mais dinheiro gera. Ganha a Chesf, ganha o ONS, ganha a indústria, ganham as multinacionais. Só não ganha o povo da bacia, que fica com o ônus da degradação depois. 

Agora, o setor elétrico baixou a vazão para 1,1 mil metros cúbicos por segundo e quer chegar a 900 mil, para impedir que chegue ao volume morto. O senhor é a favor?
Não. De maneira alguma. O Comitê da Bacia do São Francisco determinou no Plano Diretor de Bacias, que está em vigor, que a vazão mínima que deveria ser garantida em Sobradinho era de 1,3 mil metros cúbicos por segundo. Eles baixaram para 1 mil metros cúbicos e agora querem 900. Isso quebrou a curva de aversão ao risco. O volume útil é o volume que se opera a energia. Quando chega no nível mínimo, a turbina não roda mais. Isso se chama volume morto. Sabe por que se chama volume morto? Porque não é operacional para eles, para a hidrelétrica, mas o volume morto serve à população. Eles não querem parar de rodar para continuar lucrando às custas de um abastecimento precário para a população.

Então, o volume morto serve para o abastecimento?
Sim. Se fosse realmente necessário, o setor elétrico poderia liberar essa água para misturar e tirar o veneno de 35 anos com algas, metais pesados, substâncias tóxicas. É no que resulta o tempo de residência da água numa barragem. Isso se chama volume morto. Mas o setor elétrico diz: ‘Se eu secar para atender aos usos múltiplos, eu não tô operando. E seu eu secar, vou ter que esperar mais tempo para encher e voltar a operar. Que nada! Eu vou é segurar o que tenho aqui’. Essa é a ótica economicista deles. Aí eles fecham as torneiras, utilizam o mínimo de volume útil e rezam para São Pedro. Enquanto isso, as populações sofrem. Pela primeira vez, os órgãos públicos técnicos estão fazendo romaria para São Pedro, dependendo de imponderáveis da natureza, sobre os quais não podem controlar.

De quem é a decisão de flexibilizar essa vazão?
O pedido inicial é do ONS para atender o setor elétrico. A ANA (Agência Nacional de Águas) solicita a autorização ao Ibama para ver as condicionantes ambientais, os processos compensatórios e etc. Requisitado pelo ONS, a ANA intervém. O poder discricionário das outorgas hidrelétricas é exclusivo da ANA.

Mas o presidente da ANA, neste encontro, já se colocou a favor de segurar a vazão a 900 mil metros cúbicos...
É a opinião dele. Mas o maior erro da ANA é não compensar os prejuízos aos usos múltiplos de quem está na jusante, ou seja, abaixo de Sobradinho. Aqui nós temos vários projetos, que vão ter que gastar milhões para puxar a água através de bombas. O setor hidrelétrico, o ONS, tem que assumir os prejuízos. Se uma bomba de R$ 18 milhões quebra ali, o setor hidrelétrico tem que assumir, tem que indenizar. E quem tem que exigir isso é a ANA, junto com o Ibama. O ONS tem agido desde o período da ditadura até hoje de forma draconiana, de forma hegemônica, atropelando todos os usos múltiplos. E a ANA permite. 

Quais impactos já são sentidos nas populações que vivem do rio, por conta da diminuição da vazão? 
Além de alguns problemas de abastecimento, há impactos para os pescadores, nas comunidades ribeirinhas e tradicionais, na navegação de cabotagem e nas travessias de balsa do Médio, do Submédio e do Baixo São Francisco. Na Bahia, no estirão de Ibotirama, essas travessias já estão prejudicadas. Sem falar nos impactos na agricultura. Existem vários polos agrícolas de fruticultura que são impactados em decorrência das vazões restritivas impostas pelo ONS.

Por que não está chegando água em Sobradinho? Além da estiagem, há problemas também com águas subterrâneas?
O aquífero Urucuia, chamado areado Urucuia, é o aquífero estratégico que dá suporte hídrico à calha principal do Rio São Francisco quando não chove nas cabeceiras de Minas Gerais. O que ocorre é que houve uma grande expansão agrícola no Oeste baiano, nas regiões de Luís Eduardo (Magalhães), Barreiras, São Desidério, Correntina etc. E o estado da Bahia, que tem o controle das águas subterrâneas, não faz controle de outorga. As outorgas são indiscriminadas, não realiza a cobrança pelo uso de água, favorece as infrações das empresas que usam e abusam dos recursos, não só do ponto de vista quantitativo, mas qualitativo. O estado registra o aporte de 120 carretas/mês de agrotóxicos chegando na região. Isso impacta sobremaneira a calha principal do rio e diminui o caudal (taxa de escoamento).

E quais as consequências? 
O uso e o consumo perdulários nessa região impactam sobremaneira o aporte de água na calha principal do rio. Sobradinho não está recebendo água estratégica quando não chove porque o aquífero Urucuia está sendo saqueado pelas multinacionais que se apropriam do solo e da mão de obra barata e deixam um largo espectro de degradação sócio-hidro-ambiental.

Então, tem que se repensar a gestão das águas subterrâneas também?
O que ocorre é uma má gestão por parte do estado da Bahia. A Bahia não tem gestão de recursos hídricos. É nula no aspecto principalmente das águas subterrâneas. Não existem planos de bacias de rios afluentes, não existe o instrumento da cobrança aplicado, não existe fiscalização e monitoramento que pertence ao poder de polícia do estado, não existe apoio aos comitês hídricos no aspecto da governança, não existe controle e nenhum investimento do estado na gestão dos recursos hídricos. O que existe é o que chamamos de seca de gestão governamental, que é pior que a degradação e as próprias estiagens.

A falta de chuvas acaba levando a culpa, mas sempre há um erro de gestão?
Isso é um problema histórico, desde a inauguração de Sobradinho. No período que Sobradinho foi construída, encheram o reservatório para mostrar ao presidente (general João) Figueiredo o espelho d’água bonito. Sabe o que aconteceu? Quase Juazeiro e Petrolina eram tragadas. Foi o primeiro erro de gestão. Já começou errado. E isso implica até hoje. O segundo erro da Chesf veio no ano seguinte, quando uma seca terrível atingiu a região. O lago secou e apareceram todas as cidades submersas. Isso implicou em prejuízos à jusante. De Sobradinho para baixo, todo mundo ficou sem abastecimento. O Rio passou a sofrer degradação fortíssima por falta de fluxo ambiental, a partir daí.

Calcula-se que são necessários R$ 9 bilhões para revitalizar o Rio São Francisco. 
O governo atual prometeu que a cada R$ 1 investido em transposição, investiria R$ 1 em revitalização. Isso nunca aconteceu. Nunca! Já se gastou mais de R$ 23 bilhão na transposição. Hoje, a Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, que é quem pilota a revitalização, não tem um centavo de recursos. Hoje, nós temos uma seca brutal, que é um imponderável da natureza. Uma invariância natural decorrente de aquecimento global, mudanças climáticas, seca e estiagem prolongada intensificada e continuada. Mas se a gestão dos sistemas elétricos e agrários fossem bem feitos, não estaríamos assim. Se houvesse revitalização, não estaríamos assim. São 514 anos de degradação, sem revitalização. A caixa d’água do São Francisco não é mais a mesma. Se voltar a chover, o rio, dizem hidrólogos, levará, no mínimo, cinco anos para voltar a condições mais ou menos normais.

Foto: Fábio Pozzebom/Agência Brasil
Fonte: Alexandre Lyrio/Correio da Bahia

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Zé Carlos Borges

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